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Discutir tributos é direito em risco de extinção

Esta perspectiva formalista decerto é essencial e não admite retrocesso, mas está longe de ser suficiente.

Autor: Igor Mauler SantiagoFonte: Consultor Jurídico

O direito de acesso ao Judiciário — previsto na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XXXV — não se satisfaz com a mera possibilidade de que qualquer do povo proponha as ações necessárias à defesa de seus direitos e as veja decididas em prazo razoável. Esta perspectiva formalista decerto é essencial e não admite retrocesso, mas está longe de ser suficiente.

Materialmente, a realização da garantia exige, pelo menos, (a) que não haja óbices sub-reptícios ao exercício do direito de ação; (b) que a pessoa que recorre ao Judiciário para resistir a uma exigência não tenha tratamento pior do que a que simplesmente a descumpre; e (c) que, nesse caso, a procedência do pedido seja eficaz para afastar os danos que resultariam da concretização do ato combatido.

Pois bem: o Direito Tributário tem sido ora instrumento, ora campo fértil para a violação de cada um dos requisitos acima.

Comecemos pelo primeiro (inexistência de restrições oblíquas ao acesso ao Judiciário), onde os exemplos são mais numerosos.

As custas judiciais não se limitam aos processos tributários, objeto desta coluna, mas merecem rápida menção por terem, elas próprias, natureza fiscal.

O STF condiciona à fixação de um limite a validade de seu cálculo como um porcentual do valor da causa, mas parece se contentar com qualquer teto, não curando da respectiva razoabilidade. Assim é que, na ADI 3.826/GO (Pleno, Rel. Min. Eros Grau, DJe 20.08.2010), placitou tabela que chegava a mais de R$ 18 mil, e que hoje as custas da Justiça paulista extrapolam os R$ 50 mil, montantes indiscutivelmente superiores ao custo de uma ação judicial[1] e que constituem entrave econômico ao acesso à jurisdição.

Ultraje específico ao direito de ação do contribuinte é imposto pelo artigo 163 do CTN[2], que disciplina a imputação do pagamento. Anote-se desde logo a sua insuperável incompatibilidade com o artigo 164, inciso I[3], que rege o pagamento por consignação.

Este último dá ao contribuinte com mais de um débito vencido perante o mesmo Fisco o direito de pagar primeiro o que preferir (sujeitando-se ao risco de execução dos demais), enquanto o outro dá ao Fisco, na mesma situação, o poder de imputar a quantia recebida à dívida que tenha prioridade segundo os critérios ali estabelecidos.

A antinomia resolve-se pela invalidação do artigo 163, precisamente por ofensa ao artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, e também aos seus incisos LIV e LV (devido processo legal, ampla defesa e contraditório). De fato, ao carrear para a satisfação de um débito os recursos originalmente destinados à satisfação de outro — cujo inadimplemento talvez se estribasse em boas razões de defesa —, o instituto promove a cobrança insidiosa do primeiro, retirando ao particular o direito de contestá-lo em juízo, e deixa em aberto o segundo, ao qual o contribuinte não se opõe (tanto que o pagou).

Do vício não sofre a imputação do pagamento em matéria civil, marcada pela sensível diferença de competir ao devedor, e não ao credor (Código Civil, artigos 352 a 355).

Isso para não falar no Cadin do estado de São Paulo.

Visando a impedir que o contribuinte com condições de garantir o débito ficasse sem certidão de regularidade fiscal entre o fim do processo administrativo e a propositura da execução fiscal (quando, caucionando o juízo, volta a fazer jus ao documento – CTN, artigo 206), a jurisprudência passou a admitir a antecipação de penhora em ação cautelar, sem suspensão da exigibilidade do tributo — louvável medida de preservação do acesso ao Judiciário, pois doutro modo, premido pela necessidade da certidão, o particular poderia ser levado a parcelar a dívida, abrindo mão da faculdade de discuti-la.

A solução — hoje investida da autoridade de recurso repetitivo (STJ, 1ª Seção, REsp 1.123.669/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 01.02.2010), embora muitas vezes afrontada pelas instâncias inferiores — alcança também o Cadin Federal (STJ, 1ª Seção, REsp 1.137.497/CE, repetitivo, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 27.04.2010), mas é inócua contra o paulista, que só trata como regulares os débitos com exigibilidade suspensa (Lei estadual 12.799/2008, artigo 8º).

A regra leva a situações absurdas.

Primeiro, o contribuinte que pretenda discutir o tributo só será liberado do Cadin estadual se obtiver liminar ou tutela antecipada e, à falta destas, se fizer depósito integral — o que restaura na prática, e por lei estadual (contra o artigo 22, inciso I, da Constituição), a regra processual do artigo 38 da Lei 6.830/1980, que erige o depósito em condição de procedibilidade da ação anulatória de débito fiscal, há décadas invalidada pelo STF por ser atentatória ao direito de ação (STF, 1ª Turma, RE 103.400/SP, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ 10.12.1984).

Em segundo lugar, o débito em execução garantida, ainda que por carta de fiança, permanecerá ativo no Cadin estadual até o trânsito em julgado dos embargos, pois a esta altura não há mais que se falar em suspensão da exigibilidade do tributo, mas somente em suspensão do curso da execução fiscal, o que é coisa diversa.

Há maior punição por litigar com o Estado do que esta?

Ofensa ao segundo requisito acima enumerado tem-se no âmbito do chamado Refis da Crise. O contribuinte que contesta o tributo não precisa ter o mesmo tratamento daquele que o recolhe de forma espontânea e tempestiva. À falta de causa suspensiva, por exemplo, ficará sujeito aos encargos moratórios, que não incidem contra este último. Mas também não pode receber tratamento pior do que o dispensado àqueloutro que não paga e nem discute, optando por ficar inerte.

Pela redação original do artigo 32, parágrafo 1º, da Portaria Conjunta PGFN/SRF 6/2009, a dívida garantida por depósito que fosse incluída no parcelamento primeiro sofreria as reduções aplicáveis ao pagamento à vista, e só depois seria cotejada com o valor depositado, sendo o restante liberado para o particular.

Modificado pela Portaria Conjunta PGFN/SRF 10/2009, o dispositivo passou a limitar a aplicabilidade das reduções às multas e juros depositados pelo contribuinte, atribuindo ao Fisco toda a remuneração creditada pelo banco entre a data do depósito e a de seu levantamento.

Em suma: o contribuinte que depositou em juízo 200 de principal, 40 de multa de mora e 100 de juros levantará — admitindo-se que a Selic tenha sido de 100% no período, de sorte que o depósito tenha dobrado de valor — 40 de multa de mora (redução de 100% sobre o valor originalmente depositado) e 45 de juros (redução de 45% sobre a mesma base[4]). Do total corrigido de 680, o particular receberá 85, e a União, 595.

E aquele que não discutiu e nem depositou, mas aplicou na mesma data o valor em fundo de igual remuneração, pagará 200 de principal (pois este não se altera no tempo – Lei 9.249/1995, artigo 1º), 0 de multa de mora e 110 de juros (reduções idênticas às aplicadas no parágrafo anterior), apropriando-se de 370.

A disparidade em detrimento do contribuinte de melhor conduta é inaceitável, apontando para a invalidade da nova redação do artigo 32, parágrafo 1º, da Portaria Conjunta PGFN/SRF 6/2009, também por contrariedade ao artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição.

Outro foi, entretanto, o entendimento do STJ, como se nota no REsp 1.251.513/PR, sujeito ao regime dos recursos repetitivos (1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 17.08.2011).

O terceiro dos requisitos está em jogo em caso recentemente noticiado pela imprensa (decisão ainda não disponível), onde o STJ determinou a subida, para melhor exame, do recurso especial de um estado que fora inadmitido na origem.

Trata-se de saber se o contribuinte que destaca o ICMS em suas faturas e o deposita em juízo, saindo vencedor na ação em que combatia a incidência, fica impedido pelo artigo 166 do CTN[5] de proceder ao seu levantamento.

A resposta óbvia é não, pois o comando se aplica apenas à recuperação do indébito, e depósito não é pagamento (nesse sentido: STJ, 1ª Turma, REsp 547.706/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 22.03.2004). Odiosa restringenda.

E esta é a resposta correta também à luz da Constituição, pois a solução oposta retiraria à ação judicial, mesmo em caso de procedência, a aptidão para neutralizar os efeitos do ato contra o qual se volta.

Com efeito, a prevalecer este entendimento, ter-se-á a situação singular em que, ganhando ou perdendo a ação, o contribuinte perderá os depósitos de ICMS (ou de IPI) feitos em seu curso.

Eventual ordem de devolução dos valores aos consumidores finais que os suportaram, quiçá contáveis aos milhões, além de virtualmente inexequível pelo seu destinatário (o autor da ação? A instituição financeira? O Judiciário?), serviria de desestímulo ao contribuinte, que não se animaria a enfrentar anos de discussão para em grande medida beneficiar terceiros — o seu ganho ficaria restrito aos fatos geradores ocorridos após o trânsito em julgado, se é que a lei perduraria até lá —, sendo ademais punido pela demora do processo (quanto mais longínquo o encerramento do feito, mais distante estará a sua parcela de satisfação pessoal), demora a que não necessariamente terá dado causa.

A destinação dos depósitos à Fazenda Pública vencida será um convite a novas irregularidades e à chicana nos raros processos em que vierem a ser guerreadas.

As portas do Judiciário estão sempre abertas. Mas é preciso não puxar o tapete dos que se dispõem a cruzá-las.


[1] À falta de estatísticas específicas, invoca-se a título ilustrativo estudo do IPEA datado de 04.01.2012 sobre o custo das execuções fiscais movidas pela PGFN na Justiça Federal, que chegou ao valor individual médio de R$ 5.606,67 (Comunicado nº 127 – Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN; disponível em

http://agencia.ipea.gov.br/images/stories/PDFs/comunicado/120103_comunicadoipea127.pdf

[2] “Art. 163. Existindo simultaneamente dois ou mais débitos vencidos do mesmo sujeito passivo para com a mesma pessoa jurídica de direito público, relativos ao mesmo ou a diferentes tributos ou provenientes de penalidade pecuniária ou juros de mora, a autoridade administrativa competente para receber o pagamento determinará a respectiva imputação, obedecidas as seguintes regras, na ordem em que enumeradas:

I – em primeiro lugar, aos débitos por obrigação própria, e em segundo lugar aos decorrentes de responsabilidade tributária;

II – primeiramente, às contribuições de melhoria, depois às taxas e por fim aos impostos;

III – na ordem crescente dos prazos de prescrição;

IV – na ordem decrescente dos montantes.”

[3] “Art. 164. A importância de crédito tributário pode ser consignada judicialmente pelo sujeito passivo, nos casos:

I – de recusa de recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória; (...)”

[4] Os índices de redução vêm previstos no art. 1º, § 3º, I, da Lei nº 11.941/2009.

[5] “Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”


Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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